Meu calcanhar deslizou junto com a fraqueza das minhas pernas, penetrar em um mundo desconhecido foi vivenciar uma nova fase. Achei que fosse morrer, pois senti o ar frio em minha pele como sopro de outro mundo, um rapaz se uniu á mim me envolvendo em teus braços, me abraçou fechando meus olhos, ele parecia um anjo em minha direção. Minha respiração ofegante dizia palavras silenciosas algo que não consegui decifrar naquele momento tão distante da realidade. Percebi que fui atingida no peito por uma bala perdida. Quando o baque me atingiu deixando-me cair no asfalto de uma calçada suja, o rapaz me olhou sem desespero, tranqüilo enquanto esperava algo, talvez estivesse esperando que eu morresse em teus braços. Ouvi de longe com clareza o barulho de uma Ambulância, me desesperei enquanto o rapaz me abraçava, ele estava neutro sem expressão diante da minha situação grave. Colocaram-me na maca com cuidado, alguém perguntou o que tinha acontecido, o rapaz intruso foi quem respondeu:
- ela foi atingida no peito por uma bala perdida...
Não consegui ouvir mais nada, pois fecharam a porta da Ambulância. Tudo que eu mais temia que acontecesse estava diante dos meus olhos, percebi ali que eu não era nada além de pó, queria pedir perdão para minha mãe, mesmo reconhecendo meu orgulho, da filha rebelde e sem classe que fui. Queria ouvir os gritos da minha irmãzinha pela manhã, mas nada disso poderia fazer, pois meu caso se agravava a cada tentativa do meu respirar. Vi com detalhes a minha imagem de garota rebelde e estúpida perante pessoas maravilhosas, vi em um espelho da verdade onde refletia somente meu egoísmo a pessoa desonesta que fui tanto para a sociedade quanto para minha família. Nunca me imaginei necessitar de outro Ser, pois sempre preguei ser independente e capaz de me recuperar sozinha, mas naquele momento não me vi em condições de enfrentar nada, além dos monstros da minha mente.
O movimentar da Ambulância me incomodava, pois a pressa do motorista era incrivelmente assustadora. Eu sabia que nada do que eu me arrependesse poderia me fazer ficar, parecia não ter julgamento, com sangue frio voltei a respirar ao chegar a um hospital barulhento, nenhum parente, ninguém sabia que eu estaria ali. Fui direto para a sala de cirurgia, ninguém avisou os meus familiares, algo estava errado. Enquanto parecia que meu espírito saia de meu corpo senti falta do meu tempo de menina, meu futuro estava nas mãos de profissionais que nem ao menos sabiam meu nome.
É estranho imaginar que não verei o fim do mundo e muito menos terei filhos como sempre planejei, seria eu apenas mais uma vitima. Recordei do brilho no olhar de minha mãe a me ver passar de ano no colégio, algo tão insignificante aos meus olhos que nem dei tanta importância. Lembrei da morte do meu pai, de que não consegui derramar nenhuma lágrima. De milhares de vezes que toquei minha irmã do meu quarto, só por causa do egoísmo. Fui covarde, não fui boa o suficiente para dar valor, mas ainda sinto meu coração. Em um despertar quase improvável diante de pessoas que precisavam ouvir minhas desculpas, mergulhei no abismo e somente chorei, não acreditava na segunda chance da vida, mas Deus foi bondoso em me trazer de volta, vi de perto o sofrimento no meu subconsciente, de que nada do que eu fiz valeu á pena, mas quis joguei fora meu passado para renascer. Minha mãe me abraçou delicadamente, enquanto minha irmãzinha de sete anos segurava minha mão, respirei fundo até perceber que estava no lugar errado, não queria estar ali, fui pega de surpresa, o destino pregou uma peça em mim sem que eu percebesse.
Um médico se aproximou de mim e minha mãe se reergueu o olhando enquanto ele falava:
- ela passou por uma cirurgia muito delicada, achamos que a perderia por um instante, pois pareceu não responder, mas como não acredito em milagres, foi muita sorte, ela tem pé quente.
Ele tocou sua mão no ombro de minha mãe antes de sair do quarto:
- em breve ela poderá voltar para a casa. Com licença.
Explicar o que aconteceu comigo é surreal, eu acredito em milagres, talvez fosse isso que me salvou, a minha fé. Minha mãe ficou um pouquinho comigo, mas logo foi embora levando minha irmã, ela precisava ficar em casa, ao contrário não encontraríamos nada no dia seguinte, pois o meu bairro é terrivelmente assustador, onde criança faz o espetáculo e os adultos aplaudam. Vi-me sozinha em uma solidão a qual não queria me submeter, senti meu pulso, o suor da minha nuca e o vento frio que passava da janela do quarto até meus pés. Sorri para eu mesma por me ver viva, se fosse tudo um sonho jamais iria querer voltar à realidade, não acredito na sorte pré-destinada e muito menos nos políticos que só prometem segurança á população, desejo tanto sair daqui e revolucionar meu mundo onde crio fantasmas e monstros. De repente uma pedrinha atravessou a janela do meu quarto e ouvi um assovio de leve, uma enfermeira entrou em meu quarto olhou o chão pegou a pedrinha e a tacou de volta para fora da janela, me olhou com cara de nojo e fez algumas anotações em seu bloco, saiu em disparada, parecia que eu tinha alguma doença contagiosa para que ela nem se aproximasse de mim.
Estava agitada os dias passavam bem lentos, o relógio da parede estava sem pilha, mas o importante era que meu coração palpitava dentro de mim. O mesmo médico descrente se aproximou de mim me dando alta, em algumas horas minha mãe e minha irmã chegariam ao hospital para me pegarem, era tudo o que eu precisava. Consegui tomar um banho e me arrumar estava pronta para voltar para casa, enquanto uma enfermeira fez questão de pentear meus cabelos oleosos eu lia uma revista de fofocas. Em pouco tempo minha mãe chegou, eu a abracei mais uma vez lhe dando um beijo no rosto fiz o mesmo com minha irmãzinha, ao sairmos do hospital um rapaz veio em minha direção, com um olhar conhecido, mas não me lembrava da onde o conhecia. Os carros da avenida estavam em câmera lenta, até o vento em meu rosto batia bem devagar, meus cabelos voaram contra o vento e o rapaz passou diante de mim me fitando com um olhar penetrante.
Minha mãe me puxou o braço para que eu andasse, mas me senti fraca, sem reação, fiquei com o coração acelerado não consegui explicar o que estava sentindo. Fomos para a casa em fim, estava em meu quarto, minha irmãzinha entrou batendo a porta e me deu um beijo de boa noite, mas eu quis agarrá-la fazendo cócegas. Precisava me recompor, ser uma pessoa melhor para eu mesma e me corrigi diante da minha família. Manuela saiu correndo do meu quarto, eu me levantei para fechar a minha janela e fui surpreendida com a presença do mesmo rapaz na saída do hospital, coloquei a mão no peito, pois levei um susto e me concentrei em fechar a janela. Ele me olhava na calçada do outro lado da rua olhando para mim, como se quisesse dizer algo. Eu encostei a janela de vidro e percebi que o rapaz se aproximava atravessando a rua para perto da minha casa.
Eu não senti medo, estava calma, ele fechou seus olhos e os abriu novamente:
- Julia?! Este é o seu nome, não é?
Eu fiquei pasma, pensei que estivesse com amnésia por não me lembrar daquele rostinho familiar, eu voltei a abrir a janela de vidro para questioná-lo:
- da onde eu te conheço?
- você levou um tiro no peito, eu estava lá com você, enquanto delirava, me chamou de anjo e depois se apresentou como Julia. Você não se lembra?
Fiquei pasma ao ouvi-lo, tentei me lembrar de algo daquela tarde, e reconheci aquele rostinho de menino, eu continuei olhando-o:
- espera, vou descer.
Peguei meu casaco lilás e uma toca, desci a escada delicadamente, mas foi em vão, pois minha mãe estava na sala assistindo Tevê, eu a olhei espantada por ela estar acordada, mas ela veio com seu interrogatório:
- aonde você vai? Esta com dor?
Gaguejei, mas tive coragem de enfrentá-la:
- mãe, eu estou bem... Vou no portão... Já volto, vou conversar com uma pessoa.
- com quem?
- um amigo...
Sai da sala e me aproximei do portão, lá estava ele com seu olhar me contagiando, o abracei sem que ele falasse algo, e fechei meus olhos, lembrando-me daquela tarde. Detalhes eu não me lembro, mas que um anjo estava tranqüilo a me guiar tinha certeza, era ele quem me abraçou ainda ensangüentada sem se preocupar com a roupa suja de sangue. Sem se envergonhar em fazer um ato de amor á uma desconhecida, abri meus olhos com um sorriso de orelha a orelha e suspirei:
- era você... Obrigado por ficar ao meu lado.
Ele me olhou com algumas lágrimas nos olhos:
- aquela bala era pra ser minha, era eu quem deveria estar em seu lugar...
Minhas pernas estremeceram, o abracei mais uma vez e sussurrei em seu ouvido:
- acalmasse, Deus sabe de todas as coisas.
Ele me apertou um pouco mais inundando meu Ser e me transformando em alguém melhor.